Extremidades sonoras | Curadoria de Felipe Merker e Nicolau Centola

Extremidades sonoras | Curadoria de Felipe Merker e Nicolau Centola

Para nossa sorte, ou devido a falta dela, nossos “ouvidos não têm pálpebras”[1]. Os sons invadem nossa percepção mesmo a contragosto, ressoando nos diversos corpos (humanos e não humanos) que se encontram nos ambientes, podem chegar aos nossos tímpanos ou serem percebidos diretamente na pele, no tremor dos objetos, ou até mesmo pela movimentação do ar que ocasionam. Dizem até mesmo que os alguns animais podem prever terremotos dias antes de sua ocorrência, devido aos efeitos provocados pelas fricções subterrâneas de rochas que geram frequências baixíssimas[2]. Som é fluxo, imaterial, em constante mutação que antecede e precede as capacidades cognitivas humanas para existir, como John Cage já anunciara em sua conhecida experiência na câmara anecóica:

“There is no such thing as an empty space or an empty time. There is always something to see, something to hear. In fact, try as we may to make a silence, we cannot. For certain engineering purposes, it is desirable to have as silent a situation as possible. Such a room is called an anechoic chamber [….] a room without echoes. I entered on at Harvard University several years ago and heard two sounds, one high, one low. When I described them to the engineer in charge, he informed me that the high one was my nervous system in operation, the low my blood in circulation. Until I die there will be sounds. And they will continue following my death.” (CAGE, 1967 in COX, 2006, p. 4).

O som também pode ser um elemento indicial de algo que o produz, de suas fontes. Comumente buscamos reconhecê-las, para relacionarmos diretamente fonte ao resultado sonoro. Porém, o que se passa quando essa tarefa não é alcançada? Impossível não se lembrar do medo tomado pelos dois irmãos do conto A casa tomada (1946) de Julio Cortázar, são os sons que indicam as presenças que invadem a casa e os fazem se refugiar em outras partes do imóvel. A dubiedade: “o som chegava impreciso e surdo, como uma cadeira caindo no tapete ou um abafado sussurro de conversa”, o desconhecimento exato do que seriam daquelas presenças sonoras que invadem o espaço doméstico dos dois irmãos revelam a face política do som. A casa tomada é tido por muitos como uma alegoria crítica ao primeiro regime peronista argentino. E para além das alegorias, para que servem os sons dos helicópteros, das sirenes, dos estouros bombas de gás lacrimogêneo e dos tiros de armas “não letais” senão para amedrontar aqueles que se revoltam contra as classes opressoras? E estes que se revoltam também buscam formas de expandir e amplificar suas vozes, nos carros de som e megafones, fazendo suas vozes atingir os corpos e ouvidos daqueles que lutam conjuntamente.

As sonoridades (instrumentais, corporais, provenientes de fenômenos físicos, elétricas e eletrificadas) não são matéria expressiva apenas da música, em suas múltiplas manifestações, mas ao contrário, historicamente se permitiram adentrar diferentes territórios.

Ao longo do século XX, as mudanças na concepção do som enquanto meio de expressão artística[3] permitiram uma aproximação entre os domínios da música e das artes visuais. A partir de suas qualidades morfológicas, espaciais e contextuais, o som se definiu como um meio de expressão imaterial e instável, tornando-se assim, o suporte ideal para a processualidade crescente que ocorria em ambos os domínios. O experimentalismo adotado enquanto postura criativa pelos(as) artistas, deslocou o foco dos produtos artísticos em direção as operações e manipulações materiais, bem como, as experiências individuais de escuta e fruição individual das obras.

No campo da música de concerto europeia e norte-americana, a partir do início do século XX, vivenciou-se a emergência do som[4] enquanto matéria prima para criação artística; gradativamente deixou-se de lado um modelo combinatório e linguístico centrado na criação de estruturas formais abstratas, em prol de um novo paradigma, baseado nas experiências individuais de escuta das qualidades intrínsecas dos fenômenos sonoros. O compositor francês radicado nos estados unidos, Edgard Varèse, por exemplo, irá anunciar a música enquanto “som organizado” e não mais como a reunião de estruturas musicais.  Por sua vez, John Cage incorporou processos musicais aleatórios, operando uma diluição das noções tradicionais de composição musical, como a intencionalidade do autor, o controle sobre os materiais sonoros e a constituição da forma musica

No campo das artes visuais a desmaterialização[5] do objeto artístico, a participação do espectador e as experiências intermidiáticas das décadas de 1960 e 1970 abriram um novo território, no qual o som ganhou relevo enquanto suporte tanto para novas práticas, como a poesia sonora e mesmo os happenings, quanto para o remodelamento de práticas já estabelecidas, as esculturas e objetos sonoros.

Alguns artistas do grupo se dedicaram ao estudo sonoro na sua forma mais elementar, radicalmente isolando cada som e pensando em termos acústicos, fisiológicos e sinestésicos. La Monte Young irá romper com os paradigmas tradicionais da música de concerto européia e norte americana, compreendendo suas criações enquanto fluxos sonoros momentâneos, interdependentes dos mais diversos fatores do ambiente de performance. Em obras como Piano Piece for David Tudor #2 (1960), Composition 1960 #2 e Composition 1960 #5, não há mais o uma duração determinada para execução musical, a qual passa a depender da execução do artista ou do tempo que a audiência permanece no espaço de execução da obra.

É preciso destacar também as possibilidades de fixação do som sobre suporte, inauguradas no final do século XIX por Thomas Edison e sua posterior massificação, que constituíram uma “cultura do áudio[6]”, na qual nos encontramos imersos até os dias de hoje. O advento das tecnologias digitais enfatizou ainda mais tais possibilidades, por meio da convergência midiática e de tradução informacional.

O som, a partir de então, tornou-se nó de uma rede de elementos heterogêneos que se articulam e se modulam continuamente em práticas artísticas que se encontram sob o guarda-chuva denominado de arte sonora.

A arte sonora (sound art)[7], desenvolvida neste território híbrido a partir década de 1970, resulta de um processo histórico que alarga as fronteiras do que era institucionalizado enquanto arte em diversos campos do conhecimento: na música, nas artes visuais, no cinema e nas práticas radiofônicas. O termo arte sonora foi utilizado pela primeira vez em meados da década de 1980 pelo compositor e artista Dan Lander. Porém, Sound/Art é também o nome da exposição realizada em Nova York em 1984, com curadoria de William Hellerman, criador da Sound Art Foundation em 1982. Mesmo não sendo unicamente dedicada ao som, esta foi uma das primeiras exposições dedicadas às esculturas sonoras e à arte criada com sons, e abre novas possibilidades e caminhos para a estruturação do som como componente principal da produção artística.

Dentre as inúmeras definições de arte sonora, Bernd Schulz (2002: 14) define o campo como um termo aplicado às obras de arte a partir da década de 1980 que têm como característica uma interseção entre a dimensão sonora e um conceito expandido de escultura e se deve muito à dissolução da fronteira entre música e ruído. Para ele, a questão da percepção é fundamental, já que a dimensão sonora propicia a construção artística no espaço, não apenas com as qualidades físicas dos objetos, mas também com a reverberação com o próprio ambiente e com os corpos do público.

Brandon LaBelle também associa a arte sonora à questão do espaço, ao definir o som como possuidor de uma característica intrinsecamente relacional pois

“[…] emana, propaga, comunica, vibra e agita; deixa um corpo e entra em outros; se vincula e perturba, harmoniza e traumatiza; manda o corpo se mover, a mente sonhar, o ar oscilar. Aparentemente foge à uma definição enquanto tem um profundo efeito.” (2010: ix)

Esta relação do som com o espaço fornece à arte sonora sua característica principal de contemplação expositiva e não de escuta temporal. Assim, Licht (2007: 16-17) define arte sonora em três grandes pilares: primeiro, instalações e ambientes sonoros, definidos pelo espaço físico e/ou espaço acústico; segundo, obras de artes visuais que também tem uma função de produção sonora, tal como uma escultura sonora; e terceiro, sons produzidos por artistas visuais, como uma extensão das estéticas particulares do artista, geralmente expresso em outras mídias.

 

—————————————————————————————–

[1] Frase do poeta, professor e pesquisador Décio Pignatari.

[2] Ver a matéria publicada pela rede EBC, intitulada “Você sabia que os animais conseguem prever terremotos?”. Disponível em: http://www.ebc.com.br/infantil/voce-sabia/2015/04/voce-sabia-que-os-animais-conseguem-prever-terremotos

[3] Douglas Kahn em seu livro Noise, Water, Meat: a history of sound in arts (1999) traça uma narrativa, que se estende do final do século XIX aos anos 1960, a respeito das apropriações do som nas em diferentes áreas das artes: na literatura, no cinema, na música, no teatro e nas artes visuais.

[4] Sobre o processo de emergência do som na música de concerto ver: BONDUKI, 2018, pp.19 – 28; BONAFÉ, 2016, pp. 68 – 93; SOLOMOS, 2013; ZUBEN, 2005, pp. 75 – 124.

[5] Sobre o conceito de desmaterialização na arte ver: DE JESUS, 2018; ARANTES, 2012; GIANNETTI, 2002; POPPER, 1975.

[6] Sobre o surgimento da chamada cultura do áudio ver: IAZZETTA, 2009.

[7] Para um panorama histórico da arte sonora ver: LICHT, 2010; CAMPESATO, 2007, GIBBS, 2007; COX, WARNER, 2004; KAHN, 1999 .